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ARTIGO – De volta ao começo: o impostergável resgate do protagonismo da atuação criminal do Ministério Público Brasileiro

Marcos Paulo de Souza Miranda – Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais de Minas Gerais – CAOCRIM

As origens da instituição que receberia muitos anos mais tarde a denominação de Ministério Público recuam aos primórdios das antigas civilizações.

Segundo José Dilermando Meireles, à semelhança da grande nebulosa de Laplace, uma massa de antigas instituições estava carregada de embriões que se destacariam, ao correr dos anos, gerando entes jurídicos do poder estatal que foram sofrendo o processo de decantação e purificação histórica, até ganharem individualidade própria e contorno definido1.

No antigo Egito, durante a IV dinastia, atuava uma figura absolutamente característica daquela época, o Uahemu, “um oficial encarregado de levar notícia ao rei, e também como encarregado de transmitir o comando soberano²”. Na evolução desta figura encontramos uma espécie de procurador do rei, como sendo um funcionário que, falando em nome daquele, assegurava o império da lei, perseguindo os delinquentes, procurando elementos de acusação e aplicando a pena segundo a legislação vigente.

Na altura da XII dinastia, chamava-se Magiaí, funcionário que deveria ser a língua e os olhos do rei e a quem incumbia castigar os rebeldes, reprimir os violentos, proteger os cidadãos pacíficos, acolher os pedidos dos homens justos e verdadeiros, perseguindo os mentirosos, amparando as viúvas e órfãos, além de promover a acusação e descobrir a verdade³.

As atribuições que tocavam a tal funcionário do Faraó são, a toda evidência, muito símiles àquelas da instituição ministerial moderna. Por isso, o jurista italiano Berto Valori sustenta a tese de que essa é a origem mais remota do Ministério Público4, antecipando-se milhares de anos à famosa Ordonnance de Felipe, o Belo, que, em 1302, instituiu a figura dos procureurs du roi, com funções de defesa do fisco e de natureza criminal, o que influenciaria a formação do moderno Ministério Público e a sua disseminação por todo o planeta.

Por isso, a história o Ministério Público não é um início, um claudicante começo que tateia e perquire seu caminho, pois seu surgimento perde-se na noite dos tempos e se une às primeiras manifestações da estrutura jurídica da sociedade5.

Feita essa pequena viagem pela história do surgimento do Ministério Público no mundo, impossível não se perceber que a gênese de nossa instituição gravita, desde os primórdios, em torno da administração da justiça criminal pelo Poder Público (afastando o exercício da jurisdição privada) e da titularidade da ação penal com vistas a proteger a sociedade e punir os criminosos.

É essa a nossa certidão de nascimento, que mais do que representar o simples surgimento de uma instituição, constitui, em verdade, um verdadeiro salto civilizacional que não pode conceber retrocessos.
Legatário dessas velhas origens, o Ministério Público brasileiro figura no texto de nossa primeira Constituição, em 1824, que assegurava ao Procurador da Coroa e Soberania Nacional a titularidade da acusação no juízo dos crimes.

Na sequência, o Código Criminal do Império, de 1832, era expresso quanto à missão dos Promotores de Justiça:
Art. 37. Ao Promotor pertencem as attribuições seguintes:

1º Denunciar os crimes publicos, e policiaes, e accusar os delinquentes perante os Jurados, assim como os crimes de reduzir á escravidão pessoas livres, carcere privado, homicidio, ou a tentativa delle, ou ferimentos com as qualificações dos artigos 202, 203, 204 do Codigo Criminal; e roubos, calumnias, e injurias contra o Imperador, e membros da Familia Imperial, contra a Regencia, e cada um de seus membros, contra a Assembléa Geral, e contra cada uma das Camaras.

2º Solicitar a prisão, e punição dos criminosos, e promover a execução das sentenças, e mandados judiciaes.

Essas mesmas atribuições, com algumas pequenas diferenças, foram mantidas no ordenamento jurídico nacional até o advento da Constituição Federal de 1988, que revolucionou a estrutura do Ministério Público brasileiro, outorgando-lhe diversas outras funções institucionais, a exemplo da defesa dos direitos difusos e coletivos, do exercício da função de ombudsman e da defesa judicial dos interesses das populações indígenas.

A partir de então, verdade seja dita, a fim de se desincumbir das novidadeiras e desafiadoras atribuições, que abriram um fecundo campo de atuação para o Parquet brasileiro, os membros do Ministério Público acabaram por se afastar de suas antigas funções, passando a se dedicar, com maior denodo, à criação e estruturação de coordenadorias especializadas nas áreas do meio ambiente, consumidor, patrimônio público, criança e adolescente, urbanismo, patrimônio cultural, educação, conflitos agrários, etc.

Iniciava-se, assim, a fase do manejo, com muito maior ênfase, empenho e repercussão, das ações civis públicas, posteriormente substituídas pelos badalados termos de ajustamento de conduta, instrumentos esses que se transformaram praticamente em marcos de duas “gerações” de Promotores de Justiça: os demandistas e os resolutivos, que ocuparam o pináculo das atenções do Ministério Público – e da mídia nacional – ao longo das três décadas que se sucederam à Carta Cidadã.

Durante tal período, conquanto o Ministério Público não tenha abandonado a área penal, necessário reconhecer que a atuação em tal seara perdeu o protagonismo e o glamour dos tempos de antanho, quando os promotores do Tribunal do Júri, sobretudo, eram a representação clássica da nossa instituição no imaginário social. Nos novos tempos, o velho Parquet tornou-se démodé.

Enquanto isso, por motivos vários, a sociedade brasileira enfrentou uma onda de crescente aumento da criminalidade violenta, com perda de milhares de vidas inocentes em razão da atuação incontida de homicidas e ladrões, enquanto os cofres públicos eram saqueados à sorrelfa por agentes públicos e organizações criminosas que nunca se dobraram ao temor das consequências de ações civis públicas ou de improbidade administrativa, cuja legitimidade, acentua-se, nunca foi privativa do Ministério Público.
Feitas tais reflexões, cremos ser chegado o momento – impostergável – de resgatarmos o protagonismo da atuação do Ministério Público na área criminal, não apenas com igualdade, mas mesmo com superioridade às demais áreas de nossa atuação, com as quais, aliás, ela deve dialogar, cooperar e interagir.

Não nos parece mero capricho topológico o legislador constituinte ter inserido como primeira função institucional do Ministério Público a promoção, privativa, da ação penal pública na forma da lei (art. 129, I). Trata-se de nossa função primaz e da qual somos fiadores únicos do seu cumprimento em nosso país, o que impõe correspondente responsabilidade em sua desincumbência.

Como bem salienta o mestre Hugo Nigro Mazzilli, para o Ministério Público, a transcendência da ação penal pública explica-se porque nela se encontra uma das verdadeiras raízes históricas da instituição, por meio da qual exerce uma parcela direta da soberania do Estado. Todas as demais funções do Ministério Público podem ser exercidas concorrentemente por outros legitimados. Numa única hipótese, porém, o Ministério Pública age privativamente: ao decidir se promove ou não a ação penal pública6 .

Gize-se que o desempenho da titularidade da ação penal pública não se pode confundir com a singela e formal análise de investigações policiais que chegam aos gabinetes do Ministério Público ou com assépticas manifestações em processos criminais em curso.

A realização direta de investigações criminais nos casos de maior relevo; a interlocução com as forças policiais e órgãos de justiça e segurança pública em busca do efetivo combate à criminalidade; o controle externo da atividade policial com vistas ao cumprimento do princípio da eficiência, inclusive no que toca à realização de provas periciais; a criação e estruturação de grupos especializados de inteligência e combate ao crime; a integração institucional entre órgãos de diferentes instâncias com fortalecimento de entendimentos de interesse ministerial; a especialização e a profissionalização recursal, com acompanhamento permanente junto aos tribunais; o estabelecimento de metas e indicadores, são algumas medidas essenciais ao lado do escorreito manejo e deflagração das ações penais públicas.

Enfim, é tempo de resgatarmos o protagonismo da atuação criminal do Ministério Público brasileiro, não somente por fidelidade às nossas origens históricas, mas, sobretudo, por residir em tal seara a mais importante missão constitucional que nos restou outorgada, além de constituir fator essencial de legitimação da importância de nossa instituição para a sociedade, destinatária final e razão maior da nossa própria existência.

É tempo de refletir sobre essa “volta ao começo”. Tempo de buscar o brilho do sol do combate à criminalidade na menina dos olhos de cada Promotor de Justiça.

Notas:
1.MEIRELES, José Dilermando. Ministério Público – sua gênese e sua história. Revista de Informação Legislativa. Brasília. V. 21, n. 84. out/dez de 1984. p. 198.
2.VALORI, Berto, Le funzione del pubblico ministero nell’ antico Egitto, Archivio Giuridico, Vol. XXIV, XI, Modena, 1933. p. 32.
3.RITT, Eduardo. O Ministério Público como instrumento de democracia e garantia constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2002. p. 114.
4.MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil Brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 10.
5.MORAES JÚNIOR, Flávio Queiroz. Da estrutura filosófica do Ministério Público, São Paulo: Justitia, v. 123. 1983. p. 25.
6.Regime Jurídico do Ministério Público. 6. Ed. São Paulo: Saraiva. 2007. p. 299.

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